Evento, que reuniu cerca de 20 pessoas, na ‘Casa Escrevivência’, na Zona Portuária do Rio, foi organizado pelo Movimento de Mulheres em São Gonçalo (MMSG)
Mulheres autoras (SG) e, ao fundo, a escritora Conceição Evaristo (cabelos brancos) em frente à Casa Escrevivência (RJ)
Foto: Hítalo Chaves
‘Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela” (Angela Davis)
A importância da escrita como ‘estrutura’ de libertação, sua conexão com as vivências e transformações sociais foram os principais temas do encontro que reuniu escritoras ‘periféricas’ de São Gonçalo e a renomada autora mineira Conceição Evaristo, na última quinta-feira (11), na Casa ‘Escrevivência’, localizada no Largo da Prainha, um dos berços da cultura popular e negra no Brasil, no bairro da Saúde, Zona Portuária do Rio. O evento, realizado ao estilo ‘roda de conversa’, foi organizado pelo Movimento de Mulheres em São Gonçalo (MMSG).
Aclamada, na atualidade, como uma das principais escritoras brasileiras, Conceição Evaristo abriu as portas de sua ‘casa’ para ouvir o grupo de mulheres oriundas das periferias de São Gonçalo, que, assim como a autora mineira, também externaram suas dores em forma de prosa. Alvos de violências domésticas e sexuais, as mulheres gonçalenses venceram preconceitos e usaram suas experiências em uma coletânea de histórias, que deram origem ao livro entitulado: ‘Escrevivências periféricas, minha vida importa sim!’. A obra, lançada em julho de 2023, foi inspirada no método criado por Evaristo, que resulta da aglutinação entre a escrita e as vivências de mulheres negras e periféricas.
A assistente social Luciléia Baptista, uma das organizadoras do livro, falou sobre a emoção do encontro com a escritora mineira e a importância do conceito de ‘escrevivências’, que, segundo ela, foi fundamental na estruturação da obra.
“A Conceição que nos inspirou colocarmos em prática a ‘escrita’ das nossas dores. Permitiu às mulheres escreverem suas histórias, que, anteriormente, ficavam restritas aos atendimentos realizados no âmbito do Grupo Reflexivo. Esse projeto foi organizado pelo Movimento de Mulheres em São Gonçalo, durante a pandemia da Covid-19, para acolher mulheres vítimas de violência. Sou negra, mulher periférica, e esse encontro representa todas nós”, afirma, emocionada, Baptista.
Escritora Conceição Evaristo falou sobre o conceito de escrevivências periféricas durante encontro com mulheres de SG
Foto: Hítalo Chaves
'A escrita é uma forma de libertação'
Uma biblioteca, de aproximadamente 4 metros quadrados, improvisada em uma casa antiga, localizada em um casario, onde se encontra a Comunidade Remanescentes de Quilombos da Pedra do Sal, tombada em 20 de novembro de 1984 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural. Foi nesse ambiente que cerca de 20 pessoas se uniram à escritora Conceição Evaristo em uma ‘espécie’ de viagem histórica e literária, onde todos puderam falar sobre suas dores e experiências. Após ouvir os relatos, a autora iniciou sua fala ressaltando que o conceito de ‘escrevivência’ traz a ideia de um sujeito coletivo, que une pessoas pela dor.
“Quando falamos sobre nossas experiências, falamos sobre todas nós. Isso nos une. O conceito de ‘escrevivência’ não se esgota no próprio sujeito, mas traz a ideia de um sujeito coletivo. A escrita tem a virtude de nos refazer. Portanto, ainda que estejamos externando a dor, a escrita nos liberta. Ela obriga falarmos com nós mesmos, explicitar nossos sentimentos. Quando você reconhece o seu lugar de dor, é porque está buscando o seu lugar de felicidade. A escrita é esse movimento. Nos faz sonhar e buscar outra realidade. Fico feliz, quando vejo essas experiências se transformarem em livros. Escrever é um ato de coragem”, ressalta a escritora.
Evaristo se emociona com depoimento de menina de 9 anos
Durante o evento, Conceição Evaristo se emocionou com o depoimento da menina Maria Julia da Conceição Alves, de 9 anos, uma ‘pequena’ fã da escritora, que havia feito um trabalho escolar sobre a autora e sabia detalhes de sua carreira e histórico familiar. Maria, que integra um dos projetos do Movimento de Mulheres em São Gonçalo, foi escolhida pela escritora para assinar a milésima assinatura no registro de frequência da Casa Escrevivência.
“A presença da Maria, que também tem o sobrenome Conceição, me emocionou. Ela sabe a data do meu nascimento e contou sobre a minha trajetória de vida. Ela também falou sobre as suas dores. Agora será minha sobrinha também”, brincou a escritora. “Eu sei tudo sobre a vida da Conceição. Sempre gostei de pesquisar sobre ela. É uma escritora que gosto muito”, disse, a ‘pequena’ Maria, que cursa o 4º ano do ensino fundamental em uma escola pública em São Gonçalo. A assessoria da escritora Conceição Evaristo revelou que a escritora ficou encantada com a menina Maria Julia e pretende acompanhar a trajetória da criança.
Emocionada, Lucimar Santos disse ter iniciado sua experiência literária escrevendo um bilhete de apoio para ela mesma
Foto: Hítalo Chaves
‘Comecei escrevendo um bilhete para mim’
Uma das autoras do livro ‘Escrevivências periféricas, minha vida importa sim!’, a autônoma Lucimar da Silva Teixeira Santos, de 51 anos, falou da emoção de estar com a escritora Conceição Evaristo. Ela contou ter vivido, por 32 anos, uma relação abusiva. Após ser acolhida no MMSG, Lucimar desenvolveu sua paixão pela escrita ao criar um bilhete para ela mesma, durante uma dinâmica de grupo.
“Foi uma descoberta. Na ocasião, estava muito triste e quase não fui ao encontro naquele dia. Mas, durante uma dinâmica de grupo, foi proposto escrever um bilhete para nós mesmas. Eu escrevi que não podia desistir de meus sonhos e desejos. Ali nasceu minha primeira experiência literária. Hoje sou uma nova mulher”, lembrou Lucimar.
Já Deise Amarante, de 59 anos, disse que acompanha a carreira literária da escritora mineira há alguns meses e ficou lisonjeada em ter a oportunidade de participar do encontro. A sua relação com a ‘escrevivência’ teve início após ser acolhida no MMSG, quando passou a frequentar o grupo reflexivo. Deise contou que sofreu por 30 anos em uma relação abusiva. “Fiquei emocionada em falar com a Conceição e poder ouvi-la. É uma escritora que, pelos seus méritos, apesar das lutas, conseguiu escrever livros maravilhosos e nos ajudar. Eu sou outra pessoa após o livro”, afirma Deise.
Livro desvela narrativas de mulheres expostas às mais diversas violências
Para a gestora do MMSG, Marisa Chaves, a construção do livro 'Escrevivências Periféricas, minha vida importa sim!, desvela narrativas de mulheres expostas às mais diversas formas de violência, baseadas em desigualdade de gênero, raça, e classe social.
"Esta experiência tem revelado a potência do compartilhamento, incentivando-as a promover novas aprendizagens, senso de cooperação e autocuidado. A participação dessas mulheres neste livro demonstra a importância dos grupos reflexivos, formados, em sua maioria, por moradoras de territórios periféricos. Essa interação permitiu fazê-las conhecer o protagonismo na vida privada e, aos poucos, na vida pública, com destaque nas relações comunitárias", reitera Chaves.
‘Somos negras, temos voz e podemos falar’
A psicóloga Patrícia Muniz destacou as lutas das mulheres negras para ocuparem seus espaços de fala e da escrita, que, outrora, durante o processo histórico, ficaram, por muitos anos, restritos às classes privilegiadas. Muniz usou o exemplo da escravizada Anastácia, uma mulher que viveu no decorrer do século XVIII. No imaginário popular, Anastácia é retratada como uma bela mulher, que foi motivo do desejo de um ‘senhor’, sendo sentenciada a usar uma máscara punitiva de ferro e sofrer todos os tipos de violências por se negar a ter relações com ele.
Psicóloga Patrícia Muniz falou sobre as lutas das mulheres negras na conquista de espaços e liberdade de expressão
Foto: Hítalo Chaves
“Esse encontro com a Conceição Evaristo foi enriquecedor. Mostrou que nós temos oportunidade de expressão. As mulheres sempre foram às últimas a falar, sobretudo as negras, que não podiam falar em público, mesmo sendo alvos de violências. A imagem da Anastácia é um símbolo dessa época. Hoje, com as lutas e após as conquistas, estamos avançando. Eu acho que a escrita nos permite dar novos significados para dor. Foi um livro que muitas mulheres compartilharam as dores delas. A partir do momento que elas compartilham, vivenciam a felicidade, a libertação. A Conceição falou um pouco sobre isso, o quanto a escrita nos liberta. A escrita é um modo da gente se organizar. Reorganizar as nossas emoções”, ressalta Muniz, que integra os projeto Vozes Periféricas, no Movimento de Mulheres em São Gonçalo.
Passeios culturais em museu e teatro
Após o encontro com a escritora Conceição Evaristo, as escritoras gonçalenses foram ao Museu de Arte do Rio (MAR) e, depois, atravessaram a Baía de Guanabara para assistirem ao espetáculo ‘Cora no Rio Vermelho’, em cartaz no Theatro Municipal de Niterói. No MAR, elas contemplaram as exposições de artes ‘Rio Carnaval’ e ‘FUNK: Um grito de ousadia e liberdade’, que é considerada a principal mostra do ano do MAR. A exposição perpassa os contextos do funk carioca através da história. “Tanto o encontro com a Conceição como essa atividade cultural no MAR, que mostra a história do Funk, também uma atividade periférica, são aprendizados para essas mulheres, que transformaram suas dores em expressão de arte”, explica a advogada Sandra Fratane, uma das organizadoras do livro.
Uma das cenas da peça 'Cora no Rio Vermelho' sobre a autora Cora Coralina apresentado no Theatro Municipal de Niterói
Foto: Hítalo Chaves
Niterói- Em Niterói, cerca de 30 integrantes de projetos do Movimento de Mulheres em São Gonçalo foram agraciados com entradas gratuitas ao espetáculo ‘Cora no Rio Vermelho’, que teve apoio da Petrobras. O monólogo, estrelado pela atriz Raquel Penner, faz uma homenagem à escritora Cora Coralina e reúne textos e poemas que falam sobre a força feminina e a alma da mulher brasileira. A peça propõe uma relação de cumplicidade entre atriz e plateia. “Além de mostrar a força da mulher brasileira, esse espetáculo me trouxe lembranças do passado. Já estive pessoalmente com a Cora Coralina, em um hotel, e ela se mostrou simpática, solícita e me presenteou com um livro”, lembrou a aposentada Sônia Maria Lopes Figueiredo, de 77 anos.
MMSG atende vítimas de abusos e violências domésticas em três municípios
O MMSG está implementando o Projeto NEACA Tecendo Redes, iniciado em 2024, com a parceria da Petrobras, que atende demandas relativas às violências domésticas e gênero. O projeto abrange os municípios de São Gonçalo, Duque de Caxias e Itaboraí e tem como objetivo contribuir para a promoção, prevenção e garantia dos direitos humanos de mulheres, crianças, adolescentes e jovens (até 29 anos).
Em caso de ajuda, o MMSG disponibiliza seus serviços, de segunda à sexta-feira, das 9h às 17hs, nos endereços abaixo:
NEACA (SG)- Rua Rodrigues Fonseca, 201, Zé Garoto. (2606-5003/21 98464-2179)
NEACA (Itaboraí)- Rua Antônio Pinto, 277, Nova Cidade. (21 98900-4246).
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